Search
Close this search box.

Os indigenas no Brasil.

Texto de Elias Alves dos Santos.

Introdução: a História dos indígenas passada a limpo.

É necessário conhecer a trajetória ainda mal contada dos indígenas no Brasil e desconstruir diversos mitos que uma historiografia mais tradicional insiste em reafirmar. As abordagens tradicionais contém uma visão etnocêntrica, ou seja, baseada mais no olhar do Europeu sobre as populações que aqui viviam, do que na rigorosa análise científica. Além disso, essas interpretações prejudicam que seja vista a participação central dos nativos na colonização brasileira, entre outras miopias. Para essa tradição, estes não seriam portadores de História, quando muito de etnografia.

Os primeiros habitantes

Diferentemente do que se pensou, os nativos estavam nas terras brasileiras há milênios. Existem hoje estudos informando que há 9 mil anos atrás já existia espraiamento de populações autóctones pelo território brasileiro. Essas populações dividiam-se em dois grandes grupos linguísticos: os tupi e os arawak. Os primeiros iriam ocupar o litoral e a bacia paraná-paraguai, os segundos seguiriam pelo norte amazônico.

Além disso houve, nesse território de dimensões continentais, uma variedade incrível de grupos e sociedades, dividindo-se em quatro regiões principais.

Na várzea do Amazonas viviam povos com uma grande variedade de sistemas políticos que contavam com estrutura pública e atividades político-cerimoniais. É o local, por exemplo, do desenvolvimento da cerâmica marajoara, que floresceu entre 400 e 1400 d.C. na região da ilha de Marajó (atual Estado do Pará).

Na região do rio Xingu estabeleceu-se um sistema homogêneo, apesar de multiétnico e multilinguístico, onde o sedentarismo e a horticultura da mandioca permitiram o florescimento de uma população numerosa, no meio da qual havia hierarquias e distinções sociais.
No cerrado, limitados ao sul e leste do Amazonas, desenvolveram-se os povos Macro-Jê. Estes, diferentemente do que pensaram os contemporâneos e mesmo antropólogos e historiadores posteriormente, demonstraram um complexo desenvolvimento social, com economia e cosmologia impressionantes, incluindo uma arquitetura notável.

O quarto grupo principal eram os Tupi. Eles praticavam formas sofisticadas de uma agricultura extremamente adaptada ao seu estilo de vida seminômade, havendo inclusive uma divisão social do trabalho. Praticavam a caça, a pesca, a coleta de frutas e a agricultura. Em suas práticas agrícolas derrubavam árvores e cultivavam milho, mandioca, feijão e batata-doce, entre outros alimentos. Realizavam pequenas trocas entre aldeias e eram excelentes canoeiros. Só não conheciam o trabalho intenso típico do projeto mercantil europeu e, por seu caráter itinerante, suas práticas agrícolas – que incluíam a coivara – não causavam danos ao meio ambiente. A adaptação e utilização dessas práticas de modo intensivo pelos europeus recém-egressos seriam extremamente danosas para a fauna e flora brasileiras.

Análises recentes tem revisto a chamada “baixa densidade populacional indígena no Brasil”. O espaço geográfico da colônia não era de maneira nenhuma um vazio demográfico. Seus primeiros habitantes viviam em configurações socioculturais bem diferenciadas.
Apesar de dispersos no litoral, os grupos que aí habitavam formavam, na análise contemporânea de antropólogos, um mesmo tronco linguístico, sendo por isso denominados tupis (guaranis ou tupinambás sendo somente designações relativas aos diferentes territórios que ocupavam e outras variações culturais menores).

Ao chegar em locais habitados, os tupis expulsavam a população autóctone a quem atribuíam o nome pejorativo de tapuia. Estes eram grupos diversos que tinham que adentrar o interior, rivalizando constantemente com os recém-chegados. Os europeus utilizaram-se bastante dessas rixas internas nas suas táticas de aliança e conquista do território, bem como na submissão de elementos indígenas resistentes.

Aspectos dos contatos dos europeus com os ameríndios

a) O choque cultural

Já nos primeiros contatos, os portugueses associaram os nativos aos cães ou aos descendentes de Cam (daí o nome “canibais”), filho de Noé, amaldiçoado pelo pai. A partir daí toda sorte de violência poderia ser cometida contra os primeiros habitantes do território.

Suas práticas antropofágicas, seu nudismo, entre outros elementos, também seriam causa de estranhamento e justificativa para a submissão de sua mão de obra. Nas palavras de Pedro Vaz de Caminha:

“a feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus e sem nenhuma cobertura. Nem fazem caso de cobrir e mostrar suas vergonhas, e estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto”.

Já Pero Magalhães Gândavo dizia:

“A língua deste gentio toda pela costa é uma: carece de três letras – não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.”

E completava:

“São estes índios muito desumanos e cruéis, não se movem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concerto de homens, são muito desonestos e dados a sensualidade e entregam-se aos vícios como se neles não houvera razão de humanos ”

Nem mesmo relatos mais relativizadores do filósofo francês Michel de Montaigne e amigáveis realizadas pelo pastor suíço Jean de Léry e do artilheiro alemão Hans Staden desfizeram a má impressão. Surgiram várias teorias filosófico-religiosas para explicar sua origem. Para uns eles não eram descendentes de Adão, mas eram como os seres mitológicos que povoavam o imaginário europeu, a exemplo de gigantes, ninfas e duendes. Para outros, surgiam de geração espontânea, a partir da decomposição de matéria morta.

b) A catástrofe demográfica

Uma verdadeira tragédia abateu sobre os nativos por causa do embate com o elemento invasor através de guerras, epidemias (coqueluche, catapora, tifo, peste bubônica, gripes) e a aculturação pela religião e prestação de serviço. Principalmente em áreas onde era difícil a chegada do elemento negro, os indígenas foram escravizados largamente, até pelos colonos mais pobres, apesar das recorrentes proibições da Coroa e da Igreja.

Os indígenas eram divididos pelos europeus em duas categorias principais: “gentios bravos” e “índios amigos”. Aos primeiros estava destinada a “guerra justa” uma verdadeira guerra santa contra os resistentes.

E a violência contra os ameríndios corria largamente. O padre capuchinho Martins de Nantes, por exemplo, narra que, em 1706, no Ceará, cerca de 700 indígenas teriam sido massacrados após um acordo de paz, sendo suas mulheres e crianças escravizadas. Em 1768, em Poxim, na Bahia, roupas de vítimas de varíola eram entregues aos indígenas. Há relatos que indicam índios separados à força de seus parentes e marcados a ferro na face.

Na evangelização dos “amigos”, os religiosos utilizavam-se, na evangelização, da associação que os indígenas faziam dos padres com os xamãs e pajés (líderes espirituais). Indígenas aliados eram aldeados pelos jesuítas e recebiam o “benefício” da catequização e “civilização”, tornando-os “vassalos úteis”. Se não aceitassem, eram tratados como traidores e “castigados com muito rigor (…) destruindo-lhes suas aldeias e povoações e matando e cativando aquela parte deles que vos parecer que basta para seu castigo e exemplo”, conforme recomendação do rei de Portugal. Não é demais lembrar que essa concentração da população em comunidades aldeadas contribuiu para a proliferação de doenças e epidemias.

Aliás, é impossível exagerar o papel dos jesuítas nesse processo. A Companhia de Jesus, criada em 1534, representava o ápice do doutrinarismo da Contrarreforma católica, um movimento que visava restabelecer a hegemonia da Igreja diante da ameaça representada pela Reforma Protestante. Os padres jesuítas rapidamente lançaram-se ao mundo, chegando aos longínquos territórios submissos ao Império Português do Oriente e do Atlântico. No Brasil, chegaram em 1549 e pouco depois iniciaram sua obra catequética que consistia em transportar os nativos para aldeamentos e evangelizar adaptando o catolicismo a sua cultura local, utilizando em muitos casos uma verdadeira pedagogia dos castigos.

Apesar da historiografia ter enfatizado a intensa oposição entre colonos e padres jesuítas, verificou-se muitos casos de alianças recíprocas entre ambos os grupos sociais. Assim, não foram incomuns casos de jesuítas que permitiam o uso de mão de obra indígena por colonos mediante pagamento de salário. Obviamente esses indígenas eram extremamente explorados, seu estatuto não se diferenciando muito da condição dos negros escravizados, sendo provavelmente até pior.

Outros responsáveis pela dizimação indígena foram os Bandeirantes. As expedições bandeirantes, verdadeiros grupos paramilitares, dizimaram populações inteiras. A historiografia insiste no caráter heroico desses primeiros desbravadores. Mas hoje sabemos que eles foram agentes do genocídio indígena no território brasileiro.

c) A resistência indígena

Não se pense que isso não se deu sem resistências. Os indígenas não aceitaram passivamente a imposição do catolicismo ibérico, sendo muitas vezes comparados por religiosos da época com a murta – planta que, apesar de ser facilmente moldada, não permanece muito tempo no formato desejado. Por exemplo, houve o caso de um indígena convertido e salvo de morte ritual que, apesar de ter recebido o “benefício” da salvação, afirmava que preferia ter sido morto com as honras de um guerreiro.
Além disso, não faltaram casos de “índios amigos” que se rebelavam diante da intensificação do trabalho com o pau-brasil e da crescente escravidão desde a montagem da economia colonial do açúcar já no século XVI.

d) Uma história ainda em revisão

Estudos recentes têm contribuído para o entendimento da “química fina” deste processo de conquista feito por bandeirantes e europeus. Esses trabalhos tem mostrado como a participação dos próprios indígenas foi responsável, dentro da lógica própria dos nativos, pelo estabelecimento do empreendimento colonialista na América Lusa. Assim, muitas alianças entre os portugueses e povos Tupiniquim, por exemplo, ou entre franceses com os Tupinambás, foram realizadas em benefício da obra colonizadora.
Mas mesmo esses trabalhos tem mostrado que reconhecer a participação autóctone no processo, não significa atenuar as situações dramáticas que viveram e as grandes perdas que sofreram.

Conclusão

O contato do indígena com o europeu foi catastrófico. Os analistas questionam se devem substituir o termo “encontro” por “conquista”, “espaço da morte” ou mesmo “holocausto” para designar os episódios. Inúmeros indígenas, inclusive mulheres e crianças, foram escravizados. Tribos inteiras foram destruídas através das guerras, aldeamentos, epidemias e migrações forçadas, etc. Estimativas indicam que, de milhões existentes no momento das Conquistas, hoje somente restam poucas centenas de milhares.

E a marcha de extermínio prosseguiu reiterada com o apoio do Estado brasileiro dado a agentes privados durante todo o período imperial e republicano.

No período do Regime Militar, por exemplo, pesquisadores têm relatado casos de violência extrema aos indígenas. Conforme citam as historiadoras Heloísa Starling e Lilia Schwarcz:

É certo que houve violências graves cometidas pelo Estado e por agentes privados durante a Ditadura Militar Brasileira. Mas nada se compara aos crimes cometidos nesse período contra os indígenas: matanças de tribos inteiras, torturas e toda sorte de crueldades – assassinatos, prostituição de índias, sevícias, trabalho escravo, apropriação e desvio de recursos do patrimônio indígena, caçadas humanas feitas com metralhadoras e dinamite atirada de aviões, inoculações propositais de varíola em populações indígenas isoladas e doações de açúcar misturado a estricnina.”

Cf. Brasil: Uma biografia, p. 463 (adaptado).

É certo que a situação dos indígenas atualmente encontra-se menos catastrófica. Isso porque a Constituição cidadã de 1988 reconheceu a capacidade civil dos indígenas e avançou na ampliação e garantia de seus direitos; há vários indígenas se formando em Universidades, inclusive em Programas de Pós-Graduação; diversas organizações governamentais ou não-governamentais (ONGs, Pastorais, etc.) tem trabalhado em prol da promoção desses direitos; além disso, estimativas indicam que o número de indígenas voltou a crescer, um processo que aponta para a revalorização étnica.

Mas ainda há muito por fazer. O tipo de violência descrito acima ainda prossegue, obscurecido pelo caráter privativo do poder no Brasil, com suas amplas e históricas práticas mandonistas em nível local. Basta acompanhar o noticiário. Infelizmente, a situação dos indígenas no Brasil de hoje ainda é crítica.

Referências Bibliográficas:

CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de Janeiro – RJ: Editora Civilização Brasileira, 2001.
FAUSTO, B. História do Brasil. EDUSP, São Paulo – SP: 2009.
FRAGOSO, J. & GOUVEIA, M. de F. Coleção Brasil Colonial, volumes 1 (1443-1580) e 2 (1580-1720). Rio de Janeiro – RJ: Editora Civilização Brasileira, 2014, ver os capítulos 4 e 7 – 12 do vol. 1 e 9 do vol. 2.
LANGFUR, H. Áreas proibidas e hierarquias contestadas: resistência indígena à incorporação colonial na mata atlântica setecentista. In: MONTEIRO, R. B.; CALAINHO, D. B.; FEITLER, B. & FLORES (orgs.). Raízes do Privilégio: mobilidade social no mundo ibérico de Antigo Regime. Rio de Janeiro – RJ: Civilização Brasileira, 2011, pp. 355-386.
LINHARES, M. (org.). História Geral do Brasil. Rio de Janeiro – RJ: Editora Campus, 2000.
NOVAIS, L. F. (dir.). História da Vida Privada no Brasil, vol. 1: Cotidiano e Vida Privada na América Portuguesa. São Paulo – SP: Cia. das Letras, 1997. Ver os capítulos 1, 2, 4 e 5.
PRIORE, M. D. Da colônia ao império. In: Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na História do Brasil. São Paulo – SP: Editora Planeta, 2011.
SAMPAIO, P. M. Política Indigenista no Brasil Imperial. In: GRINBERG & SALLES (orgs.). O Brasil Imperial, vol. I (1808-1831). Rio de Janeiro – RJ: Editora Civ. Brasileira, 2011.
SCHWARCZ, L. e STARLING, H. M. Brasil: uma biografia. São Paulo – SP: Editora Companhia da Letras. 2015.

Compartilhe:

Picture of João Batista Correa

João Batista Correa

Sou João Batista Correa, formado em história e pedagogia. Especialista em Brasil colônia e mestre em história. Dedico minhas pesquisas sobre a história do Brasil, mais especificamente das cidades do Rio de Janeiro, Leme, Pirassununga e Santa Cruz da Conceição. Alem de historiador, sou músico e educador musical. Autor dos livros: Santa Cruz onde a Ferrovia não Passou: Escravos e Imigrantes na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição, 1836-1898; e Escravidão e Liberdade na Imperial Fazenda de Santa Cruz.

Picture of João Batista Correa

João Batista Correa

Sou João Batista Correa, formado em história e pedagogia. Especialista em Brasil colônia e mestre em história. Dedico minhas pesquisas sobre a história do Brasil, mais especificamente das cidades do Rio de Janeiro, Leme, Pirassununga e Santa Cruz da Conceição. Alem de historiador, sou músico e educador musical. Autor dos livros: Santa Cruz onde a Ferrovia não Passou: Escravos e Imigrantes na Freguesia de Nossa Senhora da Conceição, 1836-1898; e Escravidão e Liberdade na Imperial Fazenda de Santa Cruz.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.

VEJA TAMBÉM

QUEM FOI LOUISE MICHEL?

Louise Michel é uma figura icônica que transcende as barreiras do tempo, marcando sua presença como uma mulher extraordinária no cenário político e social do século XIX. Conhecida por sua

Leia mais »